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InfoÉtica - A ‘trilogia do bom profissional’: alguns dilemas do nutricionista

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A reflexão ética no exercício profissional do nutricionista tem sido perspectivada pela Ordem dos Nutricionistas, não apenas do ponto de vista deontológico, envolvendo apenas o profissional e centrado numa auto-regulação, mas também de uma ética aplicada, envolvendo a sociedade que serve e integrando as suas necessidades e expectativas em relação à profissão, numa hétero-regulação. Os nutricionistas assumem assim também a sua responsabilidade social, isto é, o seu dever de responder às necessidades e expectativas da sociedade em relação à profissão, contribuindo, na medida das suas competências, para o bem-estar social.


A adopção desta perspectiva alargada da ética aplicada aos nutricionistas evidencia bem que a Ordem tem plena consciência de que não há bons profissionais sem formação ética, ou à margem do que designo por “trilogia do bom profissional”, numa tripla exigência cumulativa: conhecimento científico (rigoroso e actualizado), proficiência técnica (hábil e exercitada), sensibilidade ética (perspicaz e criativa), assim contribuindo para a qualificação (e credibilização) da profissão.

 

O requisito de sensibilidade ética

Restringimo-nos hoje, aqui à consideração desta terceira vertente – à sensibilidade ética –, para a qual encontramos recursos relevantes no Código Deontológico, na enunciação dos princípios da: beneficência (realizar um bem), não-maleficência (evitar um mal), autonomia (respeitar as decisões de cada um em relação a si próprio), justiça (cumprir o modelo de justiça socialmente adoptado: igualitário, equitativo, libertário, etc.), privacidade e confidencialidade (manter sob segredo toda a informação que lhe foi confiada), honestidade e integridade (ser verdadeiro e incorruptível).


Estes princípios axiais, porém, podem não ser os necessários e suficientes para a prática profissional do nutricionista dada a sua actual amplitude e diversidade. Com efeito, as ciências da nutrição conhecem hoje uma impressionante expansão e diversificação dos seus domínios de actuação o que, aliás, suscita uma proporcional exposição dos nutricionistas à miríade de interesses particulares que se desenvolvem na sociedade e, por sua vez, torna também a profissão eticamente mais exigente, proporcionalmente às suas competências. Urge, por isso, associar alguns outros princípios reguladores da profissão.


Assim, ilustrativamente, sublinhamos alguns domínios em que a nutrição (muito para além de uma necessidade homeostática) tem um desempenho fundamental, exigindo simultaneamente uma postura ética diferenciada. Hoje, a nutrição: é também um factor determinante para a saúde (mais ainda quando para além da genética vem ganhando uma expressão crescente a epigenética) e está ligada directamente a várias doenças como a obesidade e a anemia, ou anorexia e a bulimia, a diabetes, o que exige o princípio do Cuidar (que é mais do que a Beneficência) na adequação das competências às necessidades, por exemplo em cuidados paliativos; influencia a vida activa (o envelhecimento) e a competição desportiva (sobretudo ao nível da alta competição e é claramente preponderante em actividades como culturismo), o que exige a Acessibilidade a profissionais idóneos; serve desde a indústria (tecnologia alimentar) à estética, o que exige o princípio a Independência das boas práticas profissionais; desenvolve investigação (nas áreas em que intervém) , o que exige  a Objectividade, Rigor e Isenção; está sujeita a representações culturais, religiosas, filosóficas e ideológicas (muito diversas) e que tem multiplicado as restrições e regimes alimentares específicos (macrobióticos, vegetarianos, vegans), o que exige o Respeito pela Diferença (cujo limite são os direitos humanos); reconhece-se como cultura, justificando a existência de restaurantes não só de várias nacionalidades (com uma gastronomia do país privilegiado), mas também de perfis gastronómicos (desde as pizarias e hamburguerias ao sushi ou à carne maturada), exigindo a Responsabilidade perante toda esta exposição pública. Mais recentemente a nutrição assumiu-se como arte, originando o culto do “chef” e a competição pelas estrelas Michelin, tendo-se revelado ainda mais símbolo de estatuto social; tornou-se numa forma de entretenimento (lazer), sendo que os (singulares) programas de cozinha realizados por mulheres se multiplicaram em número, se estenderam a homens e crianças e a estes somaram-se ainda os concursos (jogos); converteu-se (também) em publicação, sendo que a bibliografia tem vindo a aumentar muito significativamente e as publicações periódicas dedicam-lhe secções ou destacáveis; divulga-se (essencialmente) como marketing, sendo que nas redes sociais proliferam os blogs, publicidade e vendas de dietas, para além de uma panóplia de informações falsas ou exageradas, em todo o caso, à margem do rigor das ciências da nutrição.


Brevemente, o nutricionista tornou-se numa figura pública e tanto a tentação dos holofotes, como o retorno financeiro associado podem afectar a boa prestação profissional; por outro lado, temos cada vez mais figuras públicas que falam de nutrição sem serem nutricionistas. Ambas as tendências descredibilizam a profissão que se arrisca a tornar vítima do seu sucesso.

 

O caso da saúde individual e comunitária

O nutricionista pode e deve ter uma intervenção pertinente em todas as áreas destacadas, sendo que cada uma interpela diferentemente à sua sensibilidade ética, com questões diferentes e desencadeando princípios reguladores da acção diferentes também.


Mais uma vez a título de exemplo, podemos destacar um domínio paradigmático do exercício profissional do nutricionista, como é certamente o da saúde individual e comunitária, e evidenciar (1) a diversidade de questões sociais pertinentes envolvidas, (2) a complexidade dos desafios éticos suscitados e (3) a visibilidade pública que algumas questões relativas à nutrição humana hoje ganham e cuja resposta ultrapassa as competências científico-técnicas do profissional, exigindo a consideração de valores morais e princípios éticos. Eis o que se torna manifesto nas três principais vertentes por que se desenvolve a área da saúde individual e comunitária, a saber: a alimentação colectiva e restauração, a nutrição clínica, e a nutrição comunitária e saúde pública.


A mais frequente e principal questão que se coloca no âmbito da alimentação colectiva e restauração é relativa à higiene e segurança alimentar, existindo um número crescente de doenças transmitidas por alimentos (e.g. encefalopatia espongiforme bovina/BSE, e.coli, para além do mais comum risco de intoxicações alimentares). O contexto mais comum será o dos serviços de catering (com preocupações específicas ao nível dos produtos, confecção, manuseamento, transporte e conservação dos alimentos) e a sua adaptação às populações às quais se dirige, nomeadamente hospitais, escolas lares, prisões (as necessidades nutricionais destes grupos de pessoas é bastante diferente). Situamo-nos assim no plano essencialmente técnico-científico. Porém, uma vez salvaguardados estes aspectos ganha expressão uma miríade de temas de natureza ética. Entre estes podemos destacar a da sustentabilidade económica (equilibrar valor nutricional e valor económico), da sustentabilidade social (combater o desperdício alimentar atendendo ao gosto dos destinatários) e da sustentabilidade ambiental (diminuir a pegada ecológica dos alimentos, adquirindo mais produtores próximos, da época). Outro tipo de questões associadas poderão ser a da relação do nutricionista com os vários interesses em presença como sejam as obrigações do nutricionista que trabalha ou é sócio de uma firma de catering ou voluntário numa Organização Não-Governamental (ONG) de recolha de desperdício alimentar, ou ainda associado numa ONG ambiental. Poderá igualmente ser vegetariano ou vegan. Como é que estes aspectos podem influenciar a sua decisão profissional?


No âmbito da nutrição clínica, a mais frequente e principal questão que se coloca é a da perspectivação da nutrição como terapêutica, isto é, como factor determinante da recuperação da saúde, numa adequação do plano nutricional às necessidades nutricionais especiais (e.g. grávidas, crianças, idosos), mas sobretudo a patologias específicas (desde doenças directamente ligadas à alimentação e alergias a doenças do foro gastrointestinal e também outras como situações oncológicas). O contexto mais difícil será o dos cuidados intensivos (com doentes incompetentes: menores, incapacitados mentais), mas sobretudo paliativos e a articulação das necessidades nutricionais com os recursos que os progressos biotecnológicos associados à alimentação colocaram à disposição do profissional como seja a nutrição parentérica e entérica. Uma vez garantida a competência científica e assegurada a capacidade técnica, permanecem problemas éticos complexos. Entre estes destacamos os que se reportam ao lidar com restrições alimentares de ordem religiosa ou filosófica que comprometem o estabelecimento da dieta necessária. Mais radical será a recusa do doente em se alimentar, quando tem um testamento vital em que rejeita “a hidratação e a nutrição quando esta tem, como única finalidade, manter a vida”, mas a sua família não aceita. Como agir eticamente, nomeadamente se fossemos esse familiar. Também podemos colocar outro tipo de questão como a de como agiria se fosse representante do fabricante de uma nova sonda nasogástrica ou dos adesivos de fixação, ou tivesse participado num anúncio comercial de um suplemento, ou ainda se estivar a prosseguir investigação na área dos paliativos, podendo a unidade de cuidados de saúde receber um valor estipulado por cada doente que o investigador-responsável envolve). Como é que estes aspectos podem influenciar a decisão profissional?


No que se refere à nutrição comunitária e saúde pública, a questão mais preponderante que se coloca será talvez a do peso da tradição na alimentação comunitária (desde as sopas de “cavalo cansado” e à “gordura é formusura”, ao uso excessivo de sal, açúcar, gorduras), dos produtos a que as pessoas estão habituadas e ao seu modo de confecção, numa persistente desconfiança em relação a mudanças. O contexto mais complexo será o da implementação de estratégias que operem alterações, quer em grupos culturais diferenciados (e.g. ciganos, africanos, brasileiros, grupos do leste europeu), quer em contextos específicos (e.g. na infância e adolescência, na menopausa). E, mais uma vez, assegurado o desenho de regimes alimentares saudáveis, subsistem problemas éticos desafiantes como sejam optar pela política do “pau ou da cenoura”, taxar ou educar (serão alternativas?), ou ainda aferir o que deve pertencer à escolha individual (à autonomia) e o que consiste em obrigação do Estado (de contribuir para a saúde dos cidadãos), a que não será estranha também a distinção entre “educar” e “endoutrinar”. Como é que o nutricionista se coloca na politização e na moralização da alimentação? E se colaborar com uma empresa potencialmente afectada pela taxa moralizadora da alimentação poder-se-á sentar na comissão que elabora a estratégia de alteração de hábitos de consumo alimentar e nutricional? Ou se for responsável por uma coluna, num periódico, sobre alimentação saudável pode colaborar com a indústria alimentar de forma remunerada?


Estas são apenas algumas poucas, pouquíssimas questões éticas muito complexas que hoje se colocam aos nutricionistas e que exigem uma abordagem ponderada, afectando decisivamente a qualidade do exercício profissional. Nestas três vertentes, há problemas que não são científicos (relativos a ausência de conhecimento validado), nem técnicos (relativos à carência de meios de intervenção), mas de confronto de obrigações decorrentes de diferentes valores entre os vários intervenientes (a concepção da alimentação como recurso básico à sobrevivência e como terapêutica), mas também de diferentes estatutos e papeis (profissional e também activista político ou animalista) do nutricionista em situação. O confronto de valores constitui um dilema ético (oposição entre duas obrigações mutuamente excludentes), que exige a ponderação de ambos e o empenho no seu máximo cumprimento (conciliação), sendo que a confluência de interesses contraditórios protagoniza inelutavelmente um conflito que exige a identificação desses mesmos interesses e a eliminação de uma das partes em conflito.


Procurámos aqui simplesmente e de modo muito sucinto ilustrar, a partir de algumas situações, como a competência científica e técnica não são suficientes para a excelências do exercício profissional a que todos os nutricionistas aspiraram e que a Ordem vem promovendo, nomeadamente através do reforço das exigências associadas à profissão, como se verifica na presente reflexão.



 

Professora Doutora Maria do Céu Patrão Neves | https://www.mpatraoneves.pt/

Professora Catedrática de Ética e membro da Comissão de Ética da Ordem dos Nutricionistas


Texto elaborado a partir da intervenção de abertura na Conferência sobre Ética, Nutrição e Saúde, organizada pela Ordem dos Nutricionistas, no dia 20 de Setembro de 2019, no Porto.