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A geração da abundância pode encolher

A geração da abundância pode encolher
28 de Janeiro de 2022

A regra é que os filhos sejam mais altos do que os pais, mas dados recentes apontam para a possibilidade de esse processo se inverter. Entre os muitos fatores que podem explicar o fenómeno está o regime alimentar nas modernas sociedades ocidentais. A "comida de plástico" pode tornar-nos mais baixos - o primeiro aviso vem dos Países Baixos.


Os habitantes dos Países Baixos continuam a ser o povo mais alto do mundo, confirmam os dados divulgados no final de 2021 pelo Instituto Nacional de Estatística daquele país. Mas a medição de 719.000 pessoas entre os 19 e os 60 anos trouxe uma constatação surpreendente: os neerlandeses estão a ficar mais pequenos - em relação aos nascidos em 1980, os rapazes de 2000 são 1cm mais baixos e as raparigas da mesma idade perdem 1,4 cm para a geração anterior. Quando se fala de causas prováveis para este retrocesso, a alimentação aparece no topo dos comentários. Será que o regime alimentar nos países ricos ocidentais nos pode tornar mais baixos?


Há muito que soaram as campainhas de alarme sobre a proliferação e crescente popularidade dos alimentos hipercalóricos, mas pobres em nutrientes. A obesidade é uma das grandes pragas do chamado Primeiro Mundo e potencia uma série de doenças e problemas físicos com grande influência na mortalidade geral. Mas nunca até agora se levantara a hipótese de a "comida de plástico" e a alimentação desregrada poderem ter um fator limitativo para o nosso desenvolvimento vertical. Dados recolhidos nos EUA parecem confirmar essa tendência para a estagnação no crescimento das novas gerações. É a inversão total do paradigma do último século: a alimentação foi um dos argumentos que levaram os seres humanos a tomarem-se mais altos. Agora, por incrível que pareça, pode ser uma das responsáveis pelo retrocesso.


"Não é um disparate levantar essa hipótese, faz todo o sentido. É seguramente um fator a ter em conta", considera João Jácome de Castro, médico e presidente da Sociedade Portuguesa de Endocrinologia, Diabetes e Metabolismo (SPEDM)."É uma hipótese plausível e até há alguma evidência nesse sentido", confirma Alexandra Bento, bastonária da Ordem dos Nutricionistas (ON).


Ambos os especialistas destacam o facto de as questões nutricionais serem particularmente relevantes nos processos de crescimento. "O crescimento é um fenómeno multifuncional, para o qual concorre um conjunto de fatores: o património genético, a alimentação, o sedentarismo, o bem-estar material, o bem-estar psicológico e social, o acesso a cuidados de saúde...", enumera João Jácome de Castro. "Mas a alimentação destaca-se neste quadro, porque produz efeitos que são muito marcantes", completa Alexandra Bento.


Os períodos de desenvolvimento socioeconómico fazem-se acompanhar de um crescimento das pessoas. "Só que este crescimento não vai até ao infinito", alerta o presidente da SPEDM. "Na Holanda, por exemplo, o grande salto em altura deu-se entre as décadas de 1960 e 1980, mas o processo tem limitações genéticas." Sim, os seres humanos não vão continuar a crescer (ou a viver mais anos, porque a esperança de vida obedece a pressupostos muito similares aos do crescimento em altura) sem parar. Mas se agora, subitamente, os jovens estão a ficar mais pequenos do que os pais, isso não pode deixar de ser preocupante. E junta mais uma acha à fogueira do debate sobre o que se come, e como se come, nas modernas sociedades ocidentais.


PORTUGUESES CRESCERAM MUITO


Se, como salienta João Jácome de Castro, "a estatura é um bom indicador da saúde das populações", então o decréscimo na altura das novas gerações diz-nos que alguma coisa não está bem. Em Portugal, ainda não há dados que confirmem esta tendência, mas o processo de aceleração no crescimento vertical começou mais tarde entre nós. Os portugueses são dos povos do mundo que mais aumentaram em altura no último século - entre 1914 e 2014, os homens ganharam, em média, 13,9 cm e as mulheres 12,5. E o grande salto deu-se a partir da década de 1970, quando a queda do Estado Novo e a posterior adesão ao espaço europeu abriram caminho a uma era de maior distribuição de riqueza e de acesso generalizado aos cuidados de saúde.


Alexandra Bento cita um estudo publicado na revista Lancet (em que foram analisados dados de 200 países) para destacar os ganhos em altura dos portugueses e portuguesas entre 1984 e 2019: "A estatura média dos rapazes e raparigas subiu 5,2 cm entre eles e 2cm entre elas." Números semelhantes aos que foram compilados pela equipa de Jácome de Castro quando era diretor de Endocrinologia do Hospital Militar. "Recolhemos os dados [da inspeção militar] entre 1960 e 2000, a cada década, e concluímos que o português médio cresceu de 1,67m para 1,73m nesse período." Na altura, o serviço militar era obrigatório, pelo que os dados não resultam de uma amostragem, são números totais. «Há países, nomeadamente na Escandinávia, onde, mesmo sem serviço militar obrigatório, se mantém a rotina de chamar para exames médicos todos os jovens em idade de integrar as Forças Armadas, porque isso permite obter dados muito relevantes sobre a saúde pública", destaca o médico.


Naturalmente, e apesar do enorme "salto" das últimas décadas, o património genético deixa-nos ainda longe dos habitantes dos Países Baixos, os mais altos do mundo. A média de alturas dos jovens nascidos há 19 anos no país das túlipas é de 182,9 cm nos rapazes e 169,3cm entre as raparigas. Em Portugal essas médias ficam-se pelos 172,9 cm e 163,0 cm, respetivamente, pondo os homens na 75ª posição mundial e as mulheres em 48º lugar (as mulheres da Letónia, com 169,8cm, são as mais altas). Na cauda da lista de 200 países analisados estavam os timorenses (159,8 cm) e as guatemaltecas (149,4 cm).


A questão genética também foi levantada aquando da divulgação dos dados do Instituto Nacional de Estatística dos Países Baixos- a imigração, que trouxe pessoas de outras paragens, com estatura média inferior, não poderia ser responsável pelo decréscimo das médias de altura?" A diversidade genética da população é um fator a ter em conta", avisa o presidente da SPEDM.


No entanto, uma análise mais afinada dos resultados concluiu que, apesar de ter alguma influência, o facto de haver mais habitantes oriundos de outros países e diferente perfil físico não explicava tudo. Os filhos e netos de cidadãos residentes no país também não tinham crescido: os rapazes sem antecedentes migratórios não eram mais altos do que as gerações anteriores e as raparigas estavam mesmo mais baixas. E a discussão voltou a centrar-se noutras variáveis: a crise económica de 2007 (que poderá ter feito baixar a qualidade devida de algumas faixas da população) e, essencialmente, as questões ligadas à alimentação.


A discussão, no entanto, assenta sempre num cenário eventual de estarmos perante sinais ainda não confirmados por dados posteriores. "Isto é uma tendência ou um valor isolado? Teremos dever se os próximos estudos confirmam este sentido da evolução das alturas dos mais jovens", avisa Jácome de Castro.


A PRAGA DA OBESIDADE


Para já, em Portugal, os problemas mais prementes relacionados com o regime alimentar são a obesidade e as complicações que dela advêm. "Melhorámos um bocadinho nas crianças [em 2008, entre os 6 e os 8 anos de idade, 37,9% tinham excesso de peso e 15,3% eram obesas; esses números baixaram em 2019, respetivamente, para 29,7% e 11,9%, o que permitiu a Portugal passar de segundo país europeu com maior prevalência de excesso de peso infantil para 14º], mas mais de metade dos adultos [67,8%, segundo os dados mais recentes] têm excesso de peso ou são obesos", confirma o presidente da SPEDM. "Temos das taxas mais elevadas de diabetes na Europa - entre 10% e 13% da população adulta - e isso traz muitos problemas. As pessoas com diabetes são quatro vezes mais suscetíveis de sofrerem problemas cardiocerebrais e a sua esperança de vida é sete anos inferior à da população em geral."


Como é que isto aconteceu? Uma população que comia mal e não ganhava altura como noutras paragens subitamente desatou a crescer por força de uma alimentação mais abundante e mais rica - esse crescimento é um sinal positivo quando se mede a altura, mas a conversa é bem diferente quando temos em conta a "largura". "O fator essencial no crescimento em altura é a proteína, que assegura a ingestão de um conjunto de aminoácidos essenciais e micronutrientes como o ferro, o cálcio e o zinco. A proteína é predominantemente encontrada nos alimentos de origem animal, como a carne, o peixe, os ovos e o leite", analisa Alexandra Bento. "Os primeiros 1000 dias de vida são fulcrais e nessa fase qualquer défice alimentar faz-se pagar mais tarde. Nesse contexto, o leite é fundamental E a sua ingestão durante a adolescência tem urna influência enorme."


Mas só crescemos em altura nas primeiras duas décadas de vida... Para os portugueses. a súbita abundância e disponibilidade de proteína animal tornou-se um vício. "Houve um grande acréscimo de consumo desde a década de 1970. Havia uma clara deficiência, depois foi subindo e agora é excessivo. O grande problema da alimentação em Portugal, atualmente, é o baixo consumo de alimentos de origem vegetal", diagnostica a bastonária da ON. "Parece um contrassenso, depois de elogiarmos a importância da proteína animal no crescimento, mas é mesmo assim."


Os encargos, sociais e económicos, desta epidemia de excesso de peso são duríssimos. Um trabalho do Centro de Estudos de Medicina Baseada na Evidência (CEMBE) da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa e pela consultora Evigrade-IQVIA estimou que os custos para a saúde pública são de 1,2 mil milhões de euros, "aproximadamente 0,6% do PIB e 6% das despesas da saúde em Portugal. À cabeça desta fatura aparecem a diabetes, o acidente vascular cerebral, a doença cardíaca isquémica e a doença renal crónica. Em 2018, contabilizaram-se em Portugal continental 146.269 óbitos por doenças relacionadas com a obesidade, o que representa quase metade (43%) do total.


DIETAS E MODAS


Não vai ser tarefa fácil confirmar a evolução destas e outras estatísticas num cenário de pandemia. "A covid-19 trouxe consigo a suspensão das atividades letivas e não letivas, a alteração dos comportamentos alimentares..., a pandemia vai baralhar as contas", constata Alexandra Bento. E, quando falamos de variáveis que podem influenciar o crescimento das populações e a sua saúde, também não podemos esquecer a alteração dos ritmos de vida: Antes tínhamos um estilo de vida tranquilo e as condições materiais foram melhorando. Agora as condições materiais mantêm-se, mas o estilo de vida e o enquadramento (família, instabilidade social) deixaram de ser tranquilos." O aviso de Jácome de Castro vale, genericamente, para enquadrar os hábitos assumidos e as exigências colocadas sobre as novas gerações, mas ganham especial relevância num cenário de pandemia. As pessoas perdem bem-estar material e sofrem psicologicamente.


Por tudo isto - os números da obesidade, os avisos deixados pelo retrocesso no crescimento, as ameaças da pandemia - torna-se ainda mais premente redobrar a atenção sobre os comportamentos alimentares. "É imperativo apostar em medidas que promovam uma alimentação saudável", sintetiza a bastonária da Ordem dos Nutricionistas.


Essa preocupação, no entanto, tem de ser, cada vez mais, balizada por critérios científicos. E esse é um campo em que há muito para discutir. Nunca como agora se falou tanto em dietas, intolerâncias alimentares e regimes especiais, algo que Alexandra Bento vê como "uma fonte de problemas, mas também de oportunidades, se bem aproveitadas": "Tendências que ajudem a detetar intolerâncias, tudo bem; tendências que não promovam o bem-estar não interessam."


Se uma pessoa, por exemplo, for intolerante à lactose, evitar o leite é, obviamente, uma forma de proteger a sua saúde. Mas diabolizar o leite sem haver razões clínicas, é errado. "As modas são um problema. Só devo subtrair alimentos ao meu regime alimentar se tiver um problema de saúde que me leve a tal. E com aconselhamento de um profissional", reforça a nutricionista. "Qualquer regime alimentar que limite a ingestão de calorias é bom. Mas muitas das dietas que vão surgindo não têm qualquer substrato científico", reforça Jácome de Castro.


O presidente da SPEDM explica: "Mesmo que tragam redução de peso, essas dietas da moda são tão disruptivas que não funcionam no médio prazo. Perder peso num determinado período é fácil, mas depois pode ocorrer o chamado efeito "ioiô" [com ganhos de peso após final do período de dieta]. As pessoas pagam bom dinheiro para fazerem a dieta e cumprem-na porque estão a pagar. Mas não dá para viver assim e depois regressam ao normal... Nos pacientes com diabetes, que estão medicados, ainda é mais complicado. Costumo dizer que nós não tratamos quilos nem níveis de açúcar, tratamos pessoas. Cada caso é um caso."


Para cima ou para os lados, os seres humanos têm crescido de forma nítida nas últimas décadas e a alimentação é um fator crucial nesse processo. Mas agora parece ter surgido uma fronteira. Geneticamente, o "homo sapiens" foi programado para comer quando encontrava alimento. Só que agora a comida está em todo o lado e não temos de nos esforçar muito para a obter... Nas modernas sociedades ocidentais, há um preço a pagar por ainda não termos aprendido a gerir a abundância.


Fonte: Jornal de Negócios, edição impressa , 28 de janeiro de 2022