Para fins de melhorar a sua experiência, este site usa atualmente cookies. Eu Compreendo
Página Inicial
<  MAIO 2024  >
SEG TER QUA QUI SEX SAB DOM
1 2 3 4 5
6 7 8 9 10 11 12
13 14 15 16 17 18 19
20 21 22 23 24 25 26
27 28 29 30 31 1 2

A Saúde não pesa

A Saúde não pesa
13 de Junho de 2022

Quando era jovem, Carlos Oliveira praticava muito desporto. Judo, basquetebol e mesa alemã. Mas a determinada altura da sua vida embarcou. “A bordo, vi-me obrigado a reduzir para um terço a atividade que tinha em terra”, recorda.

 

“Houve uma mudança estrutural de vida, comecei a alargar e aumentei de 67 kg para 120 kg.” Quinze anos depois, foi trabalhar para o Porto de Sines.

 

“Enquanto estive no terminal mantive aquele peso, mas quando passei para um cargo de chefia, sentado o dia inteiro à secretária, este subiu para 156 kg. E com este aumento vieram muitas outras dificuldades,  aos 46 anos apareceu-me tudo: quadro prédiabético, problemas articulares, apneia do sono...”

 

Quando decidiu procurar ajuda, em 1998, não sabia bem por onde começar. Na altura, só havia um médico que tratava a obesidade mórbida por via cirúrgica em Portugal — António Sérgio, no Hospital de Santo António, no Porto — e foi à sua porta que foi bater. Primeiro, colocou uma banda gástrica, mas ao fim de 15 anos retirou-a “porque se deslocou e provocou algumas alterações no esófago”; posteriormente, seria submetido a uma cirurgia de bypass gástrico. “Inicialmente perdi 56 kg, mas em 22 anos voltei a ganhar e agora peso 125 kg. A minha vida tem sido uma luta constante para manter o peso e a qualidade de vida.”

 

Foi na sala de espera desse hospital que nasceu a ideia de criar a Adexo, Associação de Doentes Obesos e ex-Obesos de Portugal. Um dia, a notícia de que a Organização Mundial de Saúde (OMS) considerava a obesidade uma doença crónica levou-o a falar sobre o tema com meia dúzia de pessoas que estavam com ele à espera da consulta, conta o também presidente da Adexo. “Por que motivo não somos tratados como todos os outros doentes?”, questionavam-se. Falaram com o médico António Sérgio e a professora Helena Cardoso, juntaram 60 doentes (hoje são quase 4300) e em 2002 nasceu esta associação que pretendia que “a obesidade fosse reconhecida como doença crónica em Portugal [o que veio a acontecer dois anos depois] e que houvesse tratamento para a doença”.

 

Hoje, portugueses e estrangeiros já sabem que a obesidade é uma doença crónica e um desafio de saúde pública a nível mundial, como a OMS assinalou. De acordo com a agência das Nações Unidas, a obesidade e o excesso de peso têm dimensão de epidemia nos países da região europeia da OMS, atingindo cerca de dois terços dos adultos e uma em cada três crianças em idade escolar. Além disso, estão entre as principais causas de morte e de incapacidade na região, sendo responsáveis por mais de 1,2 milhões de mortes anualmente (mais de 13% da mortalidade da região) e aumentando o risco de muitas doenças não-transmissíveis, como o cancro, doenças cardiovasculares e diabetes de tipo II. “De forma alarmante, tem havido aumentos consistentes na prevalência do excesso de peso e da obesidade na região europeia e nenhum Estado-membro está ao alcance da meta de travar o aumento da obesidade até 2025”, lê-se no “Relatório da Obesidade da Região Europeia da OMS 2022”.

 

E em Portugal o cenário é idêntico: quase 60% dos adultos vive com excesso de peso (o que inclui a obesidade) e, desses, 20,8% com obesidade. Ainda assim, os últimos dados disponíveis para os adultos são de 2015, pelo que é difícil traçar essa evolução, nota a presidente da Ordem dos Nutricionistas, Alexandra Bento. Já no caso das crianças o país tem vindo “a desenvolver um trabalho muito positivo”, tendo-se verificado “uma redução, ligeira e progressiva, do excesso de peso e da obesidade”. Entre 2008 e 2019, registou-se uma redução de 8,3% na prevalência do excesso de peso e da obesidade infantil para, respetivamente, 29,6% e 12%, de acordo com o COSI, o sistema europeu de vigilância nutricional infantil da OMS, que Portugal integra. Medidas como a lei de 2019, que proíbe a publicidade de bebidas e alimentos com elevados níveis de sal, açúcar e gorduras em escolas, parques infantis e outros locais frequentados por menores de 16 anos, e as orientações para a oferta alimentar nas escolas podem ter contribuído para esta redução, acredita Alexandra Bento.

 

PANDEMIA AGRAVA EPIDEMIA

 

Com “alterações desfavoráveis” nos hábitos alimentares e no exercício físico, a pandemia poderá ter acentuado a prevalência do excesso de peso e da obesidade na região europeia da OMS. “Muito provavelmente, esta prevalência terá aumentado na população portuguesa, tanto adultos como crianças”, nota a bastonária da ON. E neste contexto a OMS deixa um conjunto de recomendações precisas aos países, entre elas a implementação de medidas económicas de promoção do consumo de hortofrutícolas e de programas e campanhas que visem aumentar a literacia alimentar, a obrigatoriedade de esquemas de rotulagem nutricional na frente da embalagem dos produtos alimentares, a promoção de ambientes salutogénicos no sector público e a monitorização da prevalência do excesso de peso e da obesidade.

 

Sendo uma doença complexa e multifatorial, caracterizada por adiposidade excessiva com riscos para a saúde, a obesidade decorre de um desequilíbrio entre a ingestão alimentar e o dispêndio de energia, a favor da primeira. “Por trás disso podem existir uma série de alterações biológicas, genéticas, mas também psicológicas e mentais que justifiquem a doença”, afirmava em 2021 à revista “Sábado” a endocrinologista e ex-presidente da Sociedade Portuguesa para o Estudo da Obesidade, Paula Freitas. “A obesidade vai muito além das escolhas do indivíduo.” Embora em alguns casos tenha origem numa doença endócrina ou causa genética, “entre 90% e 95% das pessoas têm uma obesidade exógena” (estimulada pelo estilo de vida, como o sedentarismo, a inatividade física e a má prática alimentar).

 

Do ponto de vista da personalidade há “características da pessoa que podem favorecer esta tendência para o excesso de peso ou a obesidade”; mas o contexto familiar e os hábitos de vida têm maior peso — “como, aliás, a pandemia veio demonstrar” —, indica Alexandra Antunes, membro da direção da Ordem dos Psicólogos Portugueses (OPP). E, claro, “em termos orgânicos há disfunções que favorecem o aumento da obesidade”. Já Carlos Oliveira, da Adexo, foca-se neste último ponto, referindo que a obesidade é uma doença essencialmente biológica e que é necessário acabar com a culpabilização de quem dela padece. “Uma pessoa coxa é discriminada por ser coxa, mas ninguém a culpabiliza por isso; o mesmo não se passa com quem tem obesidade, que é culpabilizado.” E defende que o comportamento apenas serve para controlar a doença. “Procurar só o nutricionista, o psicólogo, o personal trainer não chega”, atira. “Procure o seu médico.” Ainda assim, a bastonária da ON e Alexandra Antunes, da OPP, realçam que é essencial uma intervenção multidisciplinar — que inclua médicos, psicológicos, nutricionistas, farmacêuticos, entre outros — na obesidade, que já existe, por exemplo, ao nível das equipas de tratamento para cirurgia bariátrica. “Mas aqui estamos no fim da linha, na situação de intervenção e tratamento”, nota a psicóloga. “É necessária uma intervenção mais precoce ao nível dos comportamentos e dos cuidados de saúde primários.” Até porque a obesidade gera, muitas vezes, situações de discriminação ou bullying, o que pode ter grandes impactos a nível psicológico, nomeadamente ao nível da autoestima, relação consigo e com os outros. “Muitas pessoas referem um sentimento de vergonha nas relações mais íntimas e pessoais, o que lhes causa angústia, tristeza, ansiedade... Outras, por vezes, evitam sair de casa ou são discriminadas em contexto laboral.”

 

 

Fonte: Expresso, 03 de junho de 2022