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Tudo isto é carne?

Tudo isto é carne?
13 de Junho de 2022

Mal se entra no enorme terraço da Fábrica da Musa, no bairro de Marvila, Lisboa, num belo sábado de sol, sente-se o cheiro a churrasco. O lume está no ponto, só faltam a bifana e a sardinha na grelha para completar o cenário dos Santos Populares, com os manjericos a espalharem o seu aroma pelas mesas corridas de madeira.

 

Só que, em vez das febras, entremeadas ou chouriço típicos desta altura do ano, o chefe Pedro Abril começa a grelhar “carne do futuro”. Das brasas saem hambúrgueres que não o são, já completamente disfarçados quando chegam às mãos do cliente, dentro de um pão brioche e por baixo de uma fatia de queijo cheddar derretido. Esta e outras receitas foram sendo aprimoradas com a experiência de um mês na Musa da Bica, outro restaurante de Lisboa.

 

“Comecei a trabalhar estes produtos como se fossem carne, mas eles são mais fáceis: precisam de menos tempo de cozinhado e já têm a textura de que preciso”, explica. Se Anabeli, 30 anos, não tivesse dito ao namorado Pedro que não estava a comer carne, ele teria engolido o hambúrguer sem dar por nada – e o mesmo se passou com a quesadilla, o frango frito ou o pastel de massa tenra. Tudo o que este casal de flexitarianos [a sua dieta é baseada em vegetais, mas ocasionalmente consomem alimentos de origem animal] provou neste churrasco do futuro, organizado em parceria com a marca brasileira Future Farm, tinha como base soja, grão de bico ou ervilha. Nada de carne – apenas semelhanças no aspeto, na textura e no paladar.

 

“A aproximação ao sabor faz-se através de aromas naturais, tentando encontrar a proporção correta”, explica Pedro Zuim, diretor de marketing da empresa que chegou há poucos meses a Portugal. Pioneira no Brasil, onde se chama Fazenda Futuro, tem os seus produtos à venda no El Corte Inglés e vem juntar-se à concorrência, cada vez mais variada, no mercado nacional.

 

Nos últimos três anos, grandes superfícies como Continente, Pingo Doce e Lidl criaram marcas próprias de produtos vegetais que imitam carne, incluindo no sabor, mas sem vestígios da dita entre os ingredientes. E empresas conhecidas do setor alimentar, casos de Nestlé, Iglo, Izidoro e Nobre, também não quiseram ficar para trás num negócio que, em Portugal, tem crescido ao ritmo de dois dígitos por ano.

 

 

UM MILHÃO DE “VEGGIES”

 

Já a nível global, estima-se que o negócio atinja um valor de mercado de 85 mil milhões de dólares (cerca de 80 mil milhões de euros) em 2030, quando, em 2018, não ia além dos 4,6 mil milhões de dólares (4,3 mil milhões de euros). Hambúgueres, croquetes, chili, picado, costeletinhas, salsichas, bacon, linguiça, nuggets, panados e coxinhas de frango... é só escolher. Já nem o bife falta. Com a vantagem do sabor, estes novos produtos já não se destinam apenas a vegetarianos e veganos.

 

Atrevem-se, também, a conquistar os flexitarianos, ao mesmo tempo que piscam o olho aos habituais consumidores carnívoros. Em Portugal, segundo um estudo do ano passado da consultora espanhola Lantern, existem cerca de 180 mil vegetarianos e 43 mil veganos (2,3% da população adulta), mas os que se dizem flexitarianos já serão quase 800 mil, o que faz disparar o total de veggies para um número acima de um milhão de pessoas (11,9%).

 

O público-alvo cresce de tal maneira, por cá e lá fora, que a indústria se promove como uma solução capaz de inverter a tendência das emissões de gases com efeito de estufa (GEE) e consequentes alterações climáticas, além de proteger a sustentabilidade dos recursos do planeta. O ponto de comparação é sempre a produção de carne, responsável por 14,5% das emissões GEE para a atmosfera e pela ocupação da maior parte dos solos agrícolas, sendo ainda um sorvedouro da água disponível.

 

“Porque fazemos isto? Para salvar a Terra”, arroga-se a firma norte-americana Impossible Foods, que, em 2019, recebeu das Nações Unidas o Prémio de Ação Climática, pela sua comida alternativa à carne, com o sabor original. “Ao comer carne de plantas em vez de carne de animais, podemos reduzir drasticamente a pegada carbónica, salvar os abastecimentos de água e ajudar a garantir que a nossa preciosa Terra não estará cá apenas amanhã, mas também nas gerações futuras”, publicita a empresa. Exagerado, talvez, mas com um fundo de verdade.

 

Um estudo da prestigiada Universidade Johns Hopkins, nos Estados Unidos da América, publicado em 2020, conclui que, em média, a chamada “carne” vegetal tem uma pegada carbónica 93% inferior à da carne bovina, por cada 100 gramas de proteína (menos 63% em relação à carne de porco e menos 43% do que as aves de capoeira). Na ocupação dos solos, os substitutos da carne à base de plantas precisam de menos 98% do terreno utilizado pela criação de gado bovino por cada 100 gramas de proteína (menos 82% do que gado suíno e menos 77% do que aves de capoeira). Já quanto ao consumo de água, as alternativas vegetais gastam menos 77% do que os bovinos por cada 100 gramas de proteína (menos 89% do que suínos e menos 76% do que aves de capoeira).

 

“Por norma, o debate em torno das alterações climáticas centra-se nas emissões provocadas pelos combustíveis fósseis, mas a nossa pesquisa enfatiza a importância de reduzir as emissões do sistema global de alimentação”, alertou o investigador Michael Clark, da universidade britânica de Oxford, na sequência de um estudo, publicado no ano passado na Science, que defende a impossibilidade de se combater a crise climática e alcançar as metas do Acordo de Paris sem reduzir as emissões de GEE do setor agrícola. Para atingir esse objetivo, Clark considera que “o mais importante é as pessoas mudarem para dietas predominantemente à base de plantas”

 

O mesmo tipo de mensagem já tinha sido transmitido, em 2019, por Debra Roberts, do Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas das Nações Unidas, embora com abertura para incluir na dieta “alimentos de origem animal produzidos de forma sustentável em sistemas de baixa emissão de GEE”. Isto porque a pegada carbónica da pecuária intensiva é infinitamente superior à da pecuária baseada em sistemas de pastagens rotativas.

 

 

A OFERTA EM PORTUGAL

 

A recente aposta das marcas no mercado português está em linha com estas preocupações, que ganham cada vez mais adeptos em Portugal, sobretudo na faixa etária entre os 18 e os 34 anos, mas não só. Nuno Baião está quase a fazer 50 e é vegano desde o início do ano passado. Já tinha preocupações ecológicas e decidiu eliminar a carne da sua dieta, por razões ambientais. Acabou por cortar a direito com todo e qualquer produto de origem animal, ao refletir sobre o bem-estar deles.

 

A mulher, alentejana, não prescinde de comer carne, mas já tem sido “enganada” por um prato de “bolonhesa” de vegetais. “De carne, só o sabor”, brinca este gestor de conta algarvio, que também troca as voltas às duas filhas adolescentes: “Aquilo passa muito bem por carne, elas só sabem que é vegetal quando me veem comer. É também uma maneira simpática de dar legumes às crianças, que elas muitas vezes não gostam.”

 

Nuno recomenda estes novos produtos a todos os que queiram fazer uma “transição suave” para uma dieta veggie. “Substituir uma refeição por semana dá 52 ao fim do ano. Já é muita coisa”, sublinha, a pensar no meio ambiente.

 

No Lidl, o produto com mais saída é o hambúrguer, criado a partir de proteína de soja e de trigo. Tal como o picado, “economiza 91% das emissões de CO2 geradas na cadeia de produção, embalagem e transporte, em comparação com um hambúrguer de carne bovina”, de acordo com fonte oficial da cadeia alemã.

 

Os croquetes e as coxinhas “mandam” no Pingo Doce. Rita Manso, diretora comercial dos produtos de marca própria, diz que a “escolha criteriosa dos fornecedores” é meio caminho andado para “atingir a textura e o sabor desejados” no produto final. O resto fica por conta da “tecnologia alimentar”, que desempenha igualmente “um papel relevante” no processo. “Sem ela, não seria possível recriar a textura e o sabor da carne, tendo por base vegetais.”

 

O sumo de beterraba também faz magia. Em muitos hambúrgueres, é usado para replicar o sangue da carne mal passada. A equiparação das propriedades nutritivas é outra preocupação. No Continente, que desde abril passou a disponibilizar coxinhas e costeletinhas, os hambúrgueres, as almôndegas e o picado “contêm 19 gramas de proteína por cada 100 gramas, têm alto teor de ferro e fibra, e são fonte de vitamina B12”.

 

As tiras de bacon à venda no Auchan, “à base de soja de agricultura sustentável”, apresentam os mesmos trunfos do ponto de vista nutritivo. São uma das novidades mais recentes numa cadeia que conta na sua oferta com produtos da Beyond Meat – uma gigante norte-americana concorrente da Impossible Foods – e da Garden Gourmet, forte aposta da Nestlé a nível global.

 

Em Portugal desde 2019, esta gama de produtos, “inspirada no flexitarianismo”, representa uma resposta da multinacional “à crescente preocupação dos consumidores com a saúde e a sustentabilidade”, refletida na “redução do consumo de carne” em favor “de alternativas vegetais”, nota Ana Luna Pais, gestora da Garden Gourmet em Portugal.

 

Ana Taborda, 33 anos, é apreciadora das tiras braseadas desta marca, assim como o marido e o filho de 5 anos, todos vegetarianos desde 2020. “Gostamos muito, sabe a churrasco”, comenta, elogiando ainda os hambúrgueres do Lidl e os nuggets de frango do Continente pelas semelhanças de sabor. “Também como o hambúrguer vegetal do Burger King e aquilo é igual a carne”, enfatiza esta advogada, ressalvando, no entanto, que nem todas as opções que já provou são fiéis no paladar.

 

Ana diz ter mudado de hábitos alimentares por “motivos de saúde” e por querer deixar “um planeta melhor” para o filho. “Neste momento, está fora de questão comer um animal”, garante, satisfeita pela variedade de alternativas que foram chegando ao mercado. “Houve uma grande evolução nestes dois anos.”

 

Na portuguesa Izidoro, os hambúrgueres e as almôndegas são campeões de vendas na gama Veggie Lovers, mas as salsichas e o bife também apresentam bons desempenhos. “Embora sejam lançamentos recentes, e apesar de não estarmos ainda presentes em pleno no mercado da distribuição moderna, estamos a ter um crescimento muito sustentado”, adianta Marco Andrade, diretor de marketing do grupo.

 

As salsichas (Vegwurst) também são uma das razões do sucesso na “velha rival” Nobre, cuja gama Vegalia inclui o escalope vegetariano e a bolonhesa de seitan entre os produtos idênticos à carne. Segundo a gestora de marketing Cátia Costa, até se atingir “a maior similaridade com os produtos à base de carne”, há todo um “trabalho de investigação e desenvolvimento” que não abdica de “provas e testes” para se chegar “às fórmulas certas”.

 

Já a Iglo distingue-se por apresentar o “chili sem carne”, apesar de serem as almôndegas as mais procuradas nos produtos substitutos da proteína animal que tentam preservar o seu sabor. “Sabemos que esse é o fator mais importante de escolha, mas há cada vez mais necessidades a satisfazer. Já não basta ser saboroso, tem de ser saudável, sustentável e prático, porque o nosso tempo para cozinhar é cada vez menor”, afirma Inês Teixeira, diretora de marketing da Iglo Portugal, num conceito que estende a toda a gama Green Cuisine da marca, rica em vegetais.

 

“Só” falta convencer a grande fatia da população que não troca a carne por nada. Afinal, os portugueses ainda consomem quantidades cinco vezes acima da recomendada pela Organização Mundial da Saúde.

 

 

E é saudável?

 

A nutricionista Alexandra Bento avisa que é preciso ler bem os rótulos, pois os produtos processados, “sejam eles de origem animal ou de origem vegetal” podem estar cheios de “sal, açúcares e gorduras”

 

Os benefícios para a saúde dos vegetais estão amplamente documentados, assim como o excessivo consumo de carne vermelha e processada está associado a maior risco de doença cardíaca e cardiovascular, diabetes tipo 2, alguns cancros e diminuição da esperança de vida.

 

“De acordo com o estudo Global Burden of Disease, em 2019, os hábitos alimentares inadequados dos portugueses foram o quinto fator de risco que mais contribuiu para a perda de anos de vida saudável”, nota Alexandra Bento, bastonária da Ordem dos Nutricionistas, destacando “o elevado consumo de carne vermelha, o baixo consumo de cereais integrais e a elevada ingestão de sódio” como três fatores que contribuem para uma vida menos saudável.

 

O excesso de sal é precisamente uma das críticas apontadas à comida vegetal que se propõe substituir a carne, incluindo no sabor, em muitos casos ultraprocessada. Gordura saturada, amido alimentar modificado, intensificadores de sabor ou óleo de coco refinado são outros ingredientes pouco recomendados que se encontram em alguns destes produtos. Alexandra Bento aconselha “a leitura dos rótulos e a sua interpretação” no sentido de promover “escolhas alimentares mais saudáveis”. “Nos alimentos processados, sejam eles de origem animal ou vegetal, é fundamental verificar os teores de sal, açúcares e gorduras”, avisa a nutricionista.

 

 

Fonte: Visão, 09 de junho de 2022